quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A Narrativa dos documentos antigos

Os documentos antigos são muito mais do que meros registros burocráticos do passado, eles são cápsulas do tempo, guardando a essência e a história de vidas e fatos que nos precederam.

Viagem no tempo

Ter a possibilidade de acessar um documento como essa carteira de identidade de alguém que nasceu em 1886 é realizar uma viagem instantânea a um período passado, transportando-nos para o Brasil do fim do século XIX, período ainda anterior à Abolição da Escravatura e à Proclamação da República no Brasil.



Apesar de a carteira ter sido emitida já no século XX, na década de 40, não deixa de ser curiosa. Cada marca existente, o tipo de papel, a caligrafia utilizada ou até mesmo o desgaste natural do tempo em uma peça como essa carteira, evoca não apenas a memória de um indivíduo, mas também o contexto social, político e tecnológico da sua época, quando o Brasil ainda era Estados Unidos do Brasil. O próprio estilo e o formato do documento refletem as normas de identificação de então, que eram muito diferentes das que conhecemos hoje. Apesar dos avanços tecnológicos, eu diria até que essa carteira é mais requintada e elegante do que o modelo de hoje.

A titular da carteira

No caso, a titular da carteira é uma tia minha, irmã do meu avó materno, que viveu bem mais que ele, a Tia Melinha, assim chamada pela minha mãe e seus irmãos. Todos da minha geração, eu e meus primos, passamos também a adotar essa forma carinhosa, inclusive, dizem que pareço muito com ela. 

Minha tia foi mulher empreendedora, proprietária de hotel em cidade de águas termais, no interior de Pernambuco, que para o contexto da época era um feito muito avançado. Em visitas a Recife, ela já idosa, tive a oportunidade de ouvir suas histórias.

O Legado de nossos ancestrais

Ao olhar atentamente para os dados inscritos no interior da carteira, reside a memória pessoal dela, o nome, a data de nascimento e, claro, a fotografia, vemos a vida de um ancestral que se materializa. De repente, não estamos apenas lendo um registro, mas sim conhecendo sinais de uma existência. Daí vêm as indagações e curiosidades: Como era viver nessas décadas? Como era o seu dia a dia? Quais os acontecimentos da época? Quais eram os desafios de ser uma cidadã, primeiro do Brasil Imperial, depois da Primeira República?

O material da capa, uma espécie de couro, ainda muito bem conservada, o estilo da tipografia, as letras douradas e o aspecto das fotografias, uma frontal e outra de perfil (esta já bem apagada) são pistas visuais que ajudam a nos transportar para a época.

Esse documento conta parte da história da minha linhagem familiar. Ele é a prova física da jornada de um dos meus antepassados, revelando as etapas que pavimentaram e fizeram parte do meu presente. Ao preservar e estudar essas relíquias, honramos não apenas as memórias individuais, mas também a grande narrativa coletiva das nossas famílias e da sociedade em que as pessoas viveram.

O Sistema Vucetich

Além de o documento ser uma prova material da vida de um ancestral, carrega uma narrativa maior sobre o desenvolvimento da ciência forense e da cidadania no país. É um portal que nos leva diretamente à história de como o Brasil começou a identificar seus cidadãos.

Analisando a capa da Carteira de Identidade e pesquisando sobre a inscrição "Gabinete de Identificação (Sistema Vucetich)", passei a conhecer sobre o Sistema Datiloscópico de Vucetich, criado por Juan Vucetich Kovacevich e adotado oficialmente no Brasil em 1903.

Um documento como este nos convida a ir além da simples data de nascimento ou nome do portador. Ele nos força a fazer a leitura e refletir sobre o contexto de sua emissão, entendendo o que era necessário para um indivíduo ser reconhecido oficialmente.

Essa menção ao Sistema Vucetich é a parte mais fascinante. O ano de 1886, ano do nascimento da minha tia, é significativo, pois antecede a adoção oficial desse método no Brasil, que se deu em 1903 no Rio de Janeiro. Isso nos mostra:
  • Pioneirismo científico: Essa carteira pertence a uma fase em que o Brasil estava se modernizando, abandonando métodos rudimentares de identificação (como o "assinalamento sucinto" ou o Bertillonage) e adotando a Datiloscopia (identificação por impressões digitais), desenvolvida por Juan Vucetich. Essa ciência permitiu, pela primeira vez na história, uma forma precisa e inequívoca de individualizar cada pessoa;
  • A Era das impressões digitais: O documento é um testemunho da transição para um sistema onde a identidade de um cidadão passou a ser gravada nos sulcos de seus próprios dedos. Ele simboliza a busca por ordem e segurança em um país que crescia e precisava registrar de forma permanente sua população.

Pernambuco

A inscrição "Secretaria da Segurança Pública" e o brasão de "Brasil Pernambuco" fixam a identidade do portador dentro de um contexto regional específico. O Gabinete de Identificação de Pernambuco é, na verdade, o antecessor do atual Instituto de Identificação Tavares Buril (IITB), que foi criado em 1909. Pernambuco, estado de nascimento da minha tia, foi a quarta unidade da federação a adotar a datiloscopia como sistema de identificação.

Olhar arquivístico

Se atentarmos com o olhar arquivístico identificamos os princípios da proveniência e da organicidade na relação dessa carteira com os demais itens do fundo arquivístico da família Cavalcanti. Considerando os apectos históricos e sociais externos, o documento é, portanto, um elo tangível com as instituições que moldaram a vida cívica e, muitas vezes, criminal do estado. 

Em uma análise mais territorial, ele evoca a atmosfera da época, os edifícios e os funcionários que trabalhavam para registrar e catalogar a população em um período de profundas mudanças sociais e urbanas.

Documentos arquivísticos pessoais servem para comprovar a existência, direitos e ações de um indivíduo, além de possuírem um grande valor para a memória, pois contam a história pessoal e familiar, que pode ser compartilhada com gerações futuras.

Registro para a posteridade

Guardar essa carteira não é apenas guardar um objeto, é preservar uma narrativa em três níveis: a história da sua família, a história do Estado de Pernambuco e a história da ciência de identificação no Brasil.

Mais do que trazer informações, portanto, um documento dessa época é uma evidência que nos convida a sermos guardiões da história, assegurando que as vozes e as experiências dos que vieram antes de nós nunca sejam esquecidas.